domingo, 24 de abril de 2011

O machado de metal, de herói a bandido: que mundo e esse?





O machado de metal, de herói a bandido: que mundo e esse?

Eduardo Alfredo Morais Guimarães[1]


                                                            De fato, para a grande maior parte da
humanidade a globalização está se
 impondo como uma fábrica de perversidades
Milton Santos


O alerta de Milton Santos, em epigrafe, é uma incitação à subversão e é exatamente esta subversão que melhor descreve o espírito das reflexões que estamos apresentando. A idéia é pensar um pouco o mundo globalizado em que vivemos: os contornos dessa “fábrica de perversidades” em que o progresso técnico, fruto do trabalho coletivo, é aproveitado por um pequeno número de atores globais, poderosos e cegos, em seu benefício exclusivo e, sobretudo, refletir sobre os perigos de um sistema de técnicas que se impõe como único e suas implicações na cultura local. A preocupação chave é pensar alternativas que valorizem os saberes locais e que se contraponham a um movimento descrito por Milton Santos que rouba às coletividades o comando do seu destino. A proposta é, assim, pensar um pouco os efeitos da agricultura moderna, cientifizada e mundializada na sustentabilidade da agricultura camponesa a partir da imposição de um sistema único de técnicas que abarca todo o planeta.

Qual o papel do machado de metal nessa historia? Como uma ferramenta tão inofensiva como o machado conquistou o lugar de protagonista na “fábrica de perversidades”?  A idéia é pensar o machado de metal em um sistema de técnicas trazido para novo mundo, ferramenta que protagonizou o primeiro ciclo econômico da Historia do Brasil – ciclo do Pau Brasil. Ajudados pelo o machado de metal e movidos pelos apelos da “Globalização” os colonizadores inseriram a árvore, antes utilizada em uma cultura territorializada para a produção de arcos e flechas e extração de corante para pinturas, no mercado mundial como matéria prima para a indústria têxtil e marcenaria. A grande demanda do mercado externo reduziu, assim, drasticamente a incidência da árvore levando praticamente á extinção da espécie em território brasileiro.

 O inofensivo machado de metal teve, portanto, uma participação importante na “fabrica de perversidades”, responsável pelo aumento da pobreza e perdas na qualidade de vida das populações do Novo Mundo.  Um exemplo importante pode ser retirado da obra de Josué de Castro, autor paradigmático nas reflexões sobre a fome. Castro identificou nas “queimadas, de uso pré-colombiano”[2], um dos fatores responsáveis pela “fome endêmica” na Amazônia, fruto de uma “alimentação pouco trabalhada e pouco atraente”. Não há duvidas que o autor acertou em cheio quando relacionou as queimadas com a fome, afinal o sistema agrícola de corte e queima é responsável por perda de fertilidade do solo e por aumento na infestação com "ervas daninhas”. No entanto, errou também quando associou o sistema as populações pré-colombianas.  Com base em estudos sobre a origem da “terra mulata da Amazônia”, Danevan[3] afirma que a agricultura pré-européia era certamente mais intensiva e mais produtiva do que a agricultura pós contato e que a introdução da técnica do machado de metal, a partir de 1492  representou uma involução agrícola, em direção ao cultivo itinerante: “sistema vampírico das derrubadas e queimadas inclementes”[4] citado pelo próprio Josué de Castro. A técnica do machado de metal invadiu o território e contaminou as formas de existência das outras técnicas; tornou-se parte da história, com a intermediação da política, isto é, “da política das empresas e da política dos Estados”[5], e o machado de metal não chegou sozinho! O que se instalou na Amazônia foi uma família de técnicas alienígenas, alicerçada na necessidade de intensificação da agricultura e não adaptada a floreta tropical. A agricultura pré-colombiana utilizava uma técnica de queima que resulta na formação de solos com fertilidade duradoura: “queima fria”, exatamente o contrário da agricultura de corte e queima pós-contato, responsável pela degradação dos solos amazônicos.

A agricultura só se realiza pela ação humana e para entendê-la é preciso compreender o conjunto das técnicas sociais a ela associadas - “conjunto de meios instrumentais e sociais, com os quais o homem realiza sua vida, produz e, ao mesmo tempo, cria seu espaço” [6]. Os povos pré-europeus não possuíam a técnica do machado de metal, santificado pela ciência, mas possuiam uma agricultura, como afirma Danevam, mais intensiva e mais produtiva do que a agricultura pós-contato. Ao contrario do que pensava Josué de Castro, portanto, a gente amazônica não vivia esmagada pelas forças da natureza. Os povos pré-colombianos viviam da floresta e o manejo da floresta é uma prática muito antiga na Amazônia. Magalhães, pesquisador do Museu Paraense Emilio Goeldi, afirma que é possível que 60% dos 6,5 milhões de hectares da composição da floresta úmida amazônica tenham sido manejadas pelos povos pré-colombianos de maneira eficaz[7].   Por outro lado, segundo Clement e Junqueira, “a agricultura, chegou a Amazônia junto com os europeus: antes da conquista os povos amazônicos praticavam horticultura e arboricultura” [8], produziam alimentos em profusão e viviam em aldeias que chegavam a ser maiores e mais populosas que muitas capitais européias da época.

 Não obstante o machado de metal ter possibilitado uma agricultura itinerante que rapidamente se disseminou por toda a Amazônia, não pode ser considerado sozinho o vilão da história, assim com mais modernamente a moto-serra não pode ser responsabilizada pela derrubada da floresta.  O verdadeiro vilão é a unicidade da técnica e a existência de um motor único na história, representado pela mais-valia globalizada[9], pois como ensina Milton Santos à perversidade é sistêmica e está diretamente ligada a uma evolução negativa da humanidade.  Os resultados da nova situação são dramáticos e podem ser percebidos na atuação das grandes empresas que se preocupam apenas em fazer crescer a produtividade e o lucro. A história que começou com o machado de metal e ganhou novos contornos com as modernas moto-serra ainda não terminou. O sistema técnico não se contenta em ficar ali onde primeiro se instala, espalha-se e invade outros territórios.  

Como afirma Milton Santos, a perversidade é sistêmica e está na raiz da pobreza estrutural. É assim que e possível pensar a proeminência de um de sistema de técnicas que se impôs como invasor e contribui para aumentar a pobreza e ampliar o papel político/econômico das grandes empresas na regulação da vida social. É desse modo que o machado de metal possibilita a compreensão de muitas mudanças que estão ocorrendo na agricultura camponesa no Estado da Bahia. Um exemplo paradigmático pode ser as tentativas de garantir a inserção das Comunidades Negras Rurais do Baixo Sul da Bahia no mercado mundial a partir de dois programas governamentais de grande repercussão: “Agricultor Florestal” da Secretaria do Meio Ambiente, que estimula a plantação de eucalipto em pequenas propriedades rurais e “Mata Verde” da Superintendência da Agricultura Familiar da Secretaria da Agricultura que tem incentivado o cultivo de Safs compostos basicamente de seringueira e cacau.

Os resultados dos dois programas, mesmo antes do inicio dos ciclos produtivos, já são visíveis na mudança de hábitos de agricultores e agricultoras que aderem a todo um sistema de técnicas alicerçado na “revolução verde”. O consumo de grande quantidade de insumos externos como corretivos de solo, agrotóxicos e fertilizantes químicos ganha proporções alarmantes com serias implicações para a sustentabilidade da agricultura camponesa. Os danos já são visíveis na redução da diversidade dos sistemas agrícolas[10], na perda de conhecimentos e saberes tradicionais - patrimônio cultural das comunidades e danos ambientais resultante do uso indiscriminado de agrotóxicos e fertilizantes artificiais.


[1] Professor Assistente Universidade do Estado da Bahia.
[2] Cf. Castro, Josué. Geografia da Fome. Rio de Janeiro. Antares. 10.ed. 1981. p.63
[3] William Denevan. As Origens Agrícolas da Terra Mulata na Amazônia. Disponível em http://www.biochar.org/joomla/images/stories/Cap_7_Denevan.pdf. acesso em 06.03.11
[4] Idem nota 1.
[5] Santos. Milton. Por uma outra Globalização (do pensamento único a consciência universal). Disponível em http://www.4shared.com/get/x3LuBtd1/Livro_-_Por_uma_outra_globaliz.html. acesso em 06.03.11. p. 12.
[6] Santos, Milton. A Natureza do Espaço: técnica, razão e emoção. 4. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2004. p.29.
[7] Marcos Pereira Magalhães. O Mito da Natureza Selvagem. In:  Scientific American Brasil. São Paulo. Duetto, 2008 (Coleção Amazônia. Origens)
[8] Clement, Charles R e Junqueira, Andre B. Plantas Domesticadas, uma historia fascinante. In: In:  Scientific American Brasil. São Paulo. Duetto, 2008 (Coleção Amazônia. Origens)
[9] Cf. Santos Milton.  POR UMA OUTRA GLOBALIZAÇÃO (do pensamento único à consciência universal). Rio de Janeiro, Record, 2000, pp. 176
[10] Eloina Matos1 & Mariella Uzêda. “SALADA” SISTEMA AGROFLORESTAL DIVERSIFICADO, INVENÇÃO DA AGRICULTURA FAMILIAR NA MATA ATLÂNTICA DA BAHIA. disponível em http://www.sct.embrapa.br/cdagro/tema04/04tema40.pdf . acesso em 27.03.2011.